DO TERREIRO À ARENA: UMA BREVE HISTÓRIA DO BOI-BUMBÁ FONTEBOENSE


O boi-bumbá Corajoso da Cidade Nova defende as cores azul e branca, e têm historicamente ligações com as famílias Freitas, Cajaca, dentre outras. É um boi de pano preto com uma estrela de quatro pontas na testa e uma barra de pano branca, confeccionado com tecido, lycra, fibra, madeira e espuma, sendo chamado por seus torcedores de “boi do povão”. Juridicamente chama-se Agremiação Folclórica Boi-Bumbá Corajoso, CNPJ-05.421.021/0001-02, com sede provisória na rua Barnabé Gomes - s/nº - Cidade Nova. O boi-bumbá Tira-Prosa da Cidade Velha ostenta as cores vermelha e branca e tem forte vínculo com a família Lisboa (sua fundadora na época de “escola”, e seus presidentes foram todos dessa família), sendo esta considerada a sua marca como “boi da tradição”. É um boi branco confeccionado com tecido, lycra, fibra, madeira e espuma, com uma estrela vermelha de cinco pontas rodeada por dois galhos de samambaia na testa e uma barra branca. Tem como nome oficial Associação Folclórica Cultural de Fonte Boa Boi Bumbá Tira-Prosa, CNPJ - 05474239/0001, com sede provisória na Rua Boulevard Álvaro Maia - s/nº - São Francisco I (Cidade Velha).
A festa popular do boi-bumbá em Fonte Boa quase não possui referências dos seus primórdios em livros, documentos ou jornais. Praticamente tudo que sabemos vem dos escritos dos próprios participantes do evento ou da memória daqueles que brincaram nos terreiros à luz de lamparinas como seu Tinho, dona Creuza, seu Arigó da Arapanca, seu Moaca, seu Catulino, seu Arlindo e tantos outros. A partir dos anos 90, ocorreu uma preocupação em registrar a apresentação dos bois, o que nos possibilitou um conhecimento maior sobre esta manifestação.
Conta a tradição que muitos outros bumbás dançaram pelos terreiros e quadras fonteboenses para depois desaparecerem, caso do boi Brilho-Dia, Pingo-de-Ouro, Banho-de-Ouro, Estrelinha, Mina-de-Ouro, Corre-Campo, Caprichoso e Garantido, sendo que estes dois últimos nominaram Corajoso e Tira-Prosa durante a transição de boi de escola para boi de arena. Mas, por que Corajoso e Tira-Prosa permaneceram? Trabalhamos com a hipótese de que estes bois, a partir dos anos 90, passaram a expressar com muita clareza um jogo de oposição importante na organização sócio-política da pequena cidade do interior.
Um dos fundadores do Festival Folclórico de Fonte Boa, professor Humberto Lisboa, nos explica da seguinte maneira a brincadeira do boi na cidade:
“Como outras manifestações folclóricas do país tem origem na grande diversidade de povos que aqui se estabeleceram propiciando a fusão de diversos elementos culturais. No início era uma brincadeira realizada nas ruas e terreiros das residências. Eram dois bumbas: o Estrelinha, do centro da cidade, e o Tira Prosa, do bairro São Francisco. No período de 1980 até 2002 passaram a se apresentar na quadra de esportes municipal. Na década de 90 o evento evolui bastante e a disputa entre os bois tomou ares de ‘guerra’ na arena. O Tira Prosa, com as cores vermelho e branco, e o Corajoso, com as cores azul e branco, se tornaram famosos em todo estado do Amazonas”.
Uma das hipóteses mais celebradas sobre o alvorecer da brincadeira do boi-bumbá em Fonte Boa é apontada, com base em depoimentos, por Ronildo Bonet (2006, p.17):
Os primeiros relatos de brincadeiras de cunho popular/coletivo afirmam que elas aconteciam nas ruas da cidade: manja, brincadeira de roda, queimada e o boi bumba de terreiro. Sobre este folguedo ultimo, sabe-se que a sua primeira aparição no município de Fonte Boa ocorreu em uma das comunidades do rio Maiana (provavelmente a comunidade de Barreirinha), trazido por um senhor nordestino chamado Dalmácio, que veio para a Amazônia fugindo da grande seca e também atrás de riquezas com a borracha, em meados dos anos 30.
A descrição de Bonet encontra similaridade com os depoimentos orais de muitas pessoas idosas que ressaltam a presença do senhor Dalmácio (alguns chamam de Dalmazio) como um dos primeiros a apresentar a brincadeira do boi na zona rural da cidade. Segundo essas pessoas, após retornar ao Nordeste, o senhor Dalmácio teria deixado o costume de “colocar” o boi para os seus filhos que, por conseguinte, o teriam trazido do interior para a sede do município. O painel com fotografias antigas e textos apresentado pelo PROFORMAR na quadra de esportes municipal em 2004, também destaca o senhor Dalmácio como precursor da brincadeira do boi local.
Em entrevista realizada com o Professor Sebastião Lima em outubro de 2008, o informante afirmou, com base em depoimentos dos moradores mais antigos da cidade, que o boi local é anterior à década de 30:
“Nos primórdios de sua criação, as brincadeiras dos bumbás de Fonte Boa foram escritas nas ruas da cidade na segunda metade do século XX. O primeiro bumbá chamava-se Estrelinha e foi criado em 1922 pelo senhor Lúcio Guimarães. Em 1935, surgiu o segundo bumbá, o Brilho-dia que foi criado pelo senhor Damásio, um maranhense. Em 1940, o senhor Damásio cria o segundo bumbá, o Pingo-de-ouro. No ano de 1953, o senhor Severo da Costa Leite (Dandã) criou o bumbá Mina-de-ouro. Finalmente, no ano de 1958, o senhor Dandã, juntamente com o senhor Sebastião Oliveira (Tinho) criaram o bumbá Tira-Prosa”.
A versão do boi-bumbá Tira-Prosa sobre sua criação foi contada no tema “Tira-Prosa: meu boi vermelho vivo”, e cantada em forma de toada no mesmo festival folclórico em 2005. O texto da toada dizia o seguinte:
Sonho de vencedor (Cláudio Batista)
Meu boi de pano,
Conta a história em toada como tudo começou,
A arte tomou forma através da inspiração,
De Chico Vitório, o sonhador.
Boi Tira-Prosa da cor da paz todo branquinho,
nuvem pluma de algodão,
tão cheio de encanto que cativa o coração,
na testa uma estrela a brilhar.
Mestre Dandã preservou essa arte popular,
Ao som da batucada o Tira-Prosa vem brincar,
Fazendo a evolução, seguindo a voz do cantador,
Avermelhando a vida de amor.
O rubro é mais intenso é mais bonito,
Afasta a solidão de quem te ama,
Mãe Creuza tua benção iluminou o nosso touro vencedor.
Brinca meu boi vem dançar levanta a poeira,
Balança pro teu povo sempre ser feliz,
Revela o sentido de amar,
Viva o Tira-Prosa aguerrido,
Meu boi vermelho-vivo de paixão
(Tira-Prosa, 2005)
(Tira-Prosa, 2005)
Nesta acepção, a poesia consagra três pessoas importantes através das quais a protocélula do folguedo – o boi de terreiro - teria permanecido vivo: Chico Vitório, Dandã e Mãe Creuza. Sobre o primeiro temos informações imprecisas que dizem respeito à sua origem nordestina e, segundo o depoimento de dona Creuza Lisboa: “Chico Vitório que não quis mais, abandonou o boi, já tava velho”. Sobre mestre Dandã, temos dados mais seguros: chamava-se Severo da Costa Leite, que teria substituído seu Chico Vitório no comando do Tira-Prosa em meados dos anos 50. Era um nordestino negro que, segundo dizem, tinha prazer em organizar o boi para dançar em frente às casas, ganhando algum dinheiro vendendo a língua do boi. Em 1997, o boi-bumbá Tira-Prosa prestou uma homenagem ao nordestino Severo da Costa Leite, um dos precursores do boi-bumbá fonteboense, composta por Wilson e Tiago Lisboa. A letra da toada era a seguinte:
Dandã (Wilson Lisboa / Tiago Lisboa)
Ele viveu há muito tempo,
era de outros festivais,
poucos aqui o conheceram,
ele era mestre e alguma coisa a mais.
Quando chegava o mês de junho homenageava São João,
com tambores de pele curtida,
fazia suas próprias toadas,
e assim nossa cidade cantava.
Quem lembra teu nome,
quem lembra teu canto Dandã,
maestro do meu povo,
me faz feliz de novo.
(Tira-Prosa, 1997)
(Tira-Prosa, 1997)
O texto foi escrito provavelmente por quem conheceu (ou pelo menos dele teve notícia) o mestre Dandã, percebendo sua importância enquanto cantador, maestro e tirador de versos improvisados do boi. A toada também põe em voga um dos instrumentos usados na época pelo boi de terreiro, no caso “tambores de pele curtida”. Por fim, evidencia-se certo sentido de homenagem atribuído ao boi, isto é, brincava-se nas ruas e terreiros para homenagear São João no mês de junho (denotando que a brincadeira era essencialmente junina, ciclo de comemorações aos santos católicos: Santo Antônio, comemorado dia 13, São João, festejado dia 24 e São Pedro, comemorado dia 29). Podemos tecer uma analogia com o boi-bumbá Garantido de Parintins que, segundo algumas versões consagradas, teria “nascido” a partir de uma promessa feita pelo seu criador Lindolfo Monteverde a São João, em função da cura de uma enfermidade. Lembremos que o Centro de Convenções de Fonte Boa (Bumbódromo) recebeu o nome do senhor Dandã.
Sobre a terceira pessoa pela qual o boi teria permanecido “vivo”, chama-se Creuza Ferreira Lima (chamada de mãe Creuza pelos mais íntimos), matriarca da família Lisboa, casada com o senhor Sebastião Lisboa, prefeito por duas vezes da cidade e mãe do senhor Wilson Lisboa, prefeito por três vezes e hoje deputado estadual. Passou a gostar de brincadeiras vendo o seu pai, José Ferreira Lima, organizando e brincando pelas ruas de Fonte Boa: “Todos os bois que inventavam na cidade meu pai estava no meio. Ele era a burrinha do amo, acho que foi por isso”. Filha de cearenses vindos no período da borracha, tendo uma avó índia (Cocama ou Ticuna?), e um avô peruano, dona Creuza começou a colocar o boizinho chamado Estrelinha por causa de seu filho caçula Estênio. Ele chorava e pedia para fazer o boi. Todos os outros filhos brincavam no boizinho. “Mas, antes de mim, já existiam outros colocadores de boi como o Arigó da Arapanca, ele colocava o boi pra fazer medo pros outros”. Dona Creuza diz que colocava o boi sozinha e depois, passou a contar com a ajuda de seus filhos, “era apenas uma forma de brincadeira. O boi ia de casa em casa dançando para quem pagasse por sua língua. Tinha o amo do boi, dona Maria, os rapazes, os vaqueiros, o doutor, o padreco, a Catirina, o Negro Chico, o miolo do boi e os índios. O boi morria e vivia através de uma criança colocada atrás do rabo do boi, em seguida pedia-se para o boi urrar e ele urrava”.
Mais ou menos neste período recordado por dona Creuza, Charles Wagley (1988, p.206) realizava seus estudos na comunidade amazônica de Itá (nome fictício atribuído à cidade de Gurupá no Pará) e sustentava que as “festas de junho – Santo Antônio (dia 13), São João (dia 24) e São Pedro e São Paulo (dia 29) – são das mais características e tradicionais do Brasil”. O autor menciona ainda o caráter socializador dessas festas juninas tradicionais da cultura brasileira, segundo o mesmo, herdadas de Portugal e adaptadas às novas condições. Elas são motivos de reunião das famílias ao redor de fogueiras para comerem iguarias tradicionais, cantarem e dançarem. Dentre as brincadeiras realizadas na época junina em Itá, Wagley escreve que “o povo prefere o Boi-bumbá”:
Esta comédia do folclore tradicional é representada por atores locais em várias cidades do Norte do Brasil e em quase todas as comunidades amazônicas nessa época do ano. Mesmo em Belém várias companhias apresentam o Boi-bumbá em junho e julho (WAGLEY, 1988, p.207).
Ao que parece não era somente em Itá que o boi representava o divertimento mais importante para as pessoas, conforme lemos em Mário Ypiranga Monteiro (1964, p.54), “é tão universal esse auto na Amazônia, que se pode encontrá-lo até nos recessos dos seringais (...). Em todos os municípios do Estado, o bumbá é uma lídima expressão de cultura enraizada nos destinos do povo”.
Eduardo Galvão (1951, p.276) também realizou estudos em Itá, chamando a atenção para a “venda da língua do boi” ao “dono da casa” que contratava previamente o grupo de “brincantes” que, por sua vez, retribuíam a dádiva oferecendo em troca a encenação do auto do boi. O autor descreve os seguintes personagens do boi de Itá: amo, dona Maria, primeiro e segundo vaqueiros, pai Francisco ou “Nêgo Chico” e mãe Catirina, caboclos, índios e seu tuxaua, doutores, o boi e seu tripa.
Não é de se estranhar, portanto, que em meados dos anos 40 e 50 do século passado, o boi-bumbá fosse a maior atração pública existente em Fonte Boa no período junino, inclusive com a apresentação da tragicomédia por mais de um grupo de brincantes. Num outro trabalho, Mario Ypiranga Monteiro (2006, p.218), com base no Serviço de Estatística do Amazonas (SEA) referente às ocorrências do bumbá no interior do Estado, registra o seguinte no ano de 1957:
Quadro 6 – Ocorrência do boi-bumbá em Fonte Boa (1957)
Lugares
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Nome
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Quant.
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Caract.
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Ocorrên.
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Designação
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Fonte Boa
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1
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Semelhantes
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Via pública
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Boi-bumbá
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Fonte: SEA, 1957.
É preciso enfatizar que as informações referentes a cada boi-bumbá das cidades do interior eram obtidas por meio de depoimentos de pessoas encarregadas em pesquisar a referida manifestação popular. No caso de Fonte Boa, o informante foi Oscar Hayden, que infelizmente não declarou o nome do boi-bumbá observado. Se traçarmos um paralelo entre as falas das pessoas que brincaram nos terreiros fonteboenses e a fonte apresentada pelo folclorista amazonense, pode-se concluir que o boi-bumbá que se apresentava nas vias públicas de Fonte Boa em 1957 era provavelmente o Pingo-de-Ouro ou o Tira-Prosa, ambos organizados pelo senhor Dandã. Sendo que outros “boizinhos” de menor expressão também perambulavam pelas ruas durante esse período.
Nossos informantes se referem com muita propriedade à brincadeira daquele tempo. Segundo os mesmos, o boi dançava nos terreiros, nas ruas e na frente das casas daqueles que pagavam. Havia o chamamento do boi que ficava no meio da mata escondido. Os vaqueiros e toda a roda cantavam: “Vaqueiro de fama, estou te chamando e vai buscar meu boi pra roda, que o povo tá esperando...”. Quando se ouviam os foguetes era porque o boi tinha sido encontrado, motivo de alegria da população. O boi vinha todo sujo de mato e lama, no caminho ele dava cabeçadas nas portas das casas, mas ninguém ficava com raiva, pois era uma festa, um prazer para a população que se reunia espontaneamente no mês de junho para brincar. Os materiais usados para a confecção das fantasias do boi de terreiro eram simples: papel de seda colorido, penas de garça, gavião, arara, coladas com goma, chapéus de Carnaúba enfeitados com espelhinhos, fitas, algodão e papel brilhoso, além das máscaras de papelão.
No final da encenação, o boi era repartido, cada pedaço ia para alguém conhecido da cidade. Era uma alegria (e até honra) receber um pedaço do boi. O que se observa é o caráter socializador da brincadeira, ansiosamente esperada pela população, agregando gente, em oposição, também sustentando as hierarquias sociais vigentes, como consta na “repartição do boi” somente às pessoas importantes. Quanto aos personagens do enredo, Wallace Caresto em entrevista lembra dos seguintes:
“O meu pai, Egberto Caresto, aprendeu a fazer o boi em Fonte Boa mesmo. Neste período além dele, o Pote era o Amo, Eu também fazia participação de Amo, o Moaca era o miolo, existiam os índios, os Negos Chico. Brincavam adultos e crianças na mesma roda de boi”. Sabá Lima também cita alguns personagens do antigo boi de terreiro: “Eu tenho uma vaga lembrança como eram os personagens, o pajé, o padre, o doutor, um cordão de índios, e o auto-do-boi que naquele tempo ninguém sabia o que era auto-do-boi, aquela morte e ressurreição do boi, então eu achava tudo isso muito interessante”.
Com uma ou outra variação, o enredo e os personagens identificados pelos brincantes do antigo boi de terreiro fonteboense, são similares aos presentes no boi “Dois de Oiro”, descrito por Wagley em Itá, no ano de 1948. Lá como aqui, as “palavras da peça são faladas e cantadas”, com versos tradicionais que “nunca deixam de provocar risos na audiência, apesar de terem sido ouvidos vezes sem conta”.
Depois da primeira representação qualquer pessoa pode convidar o grupo para representar em frente à sua residência. Todas as famílias da Primeira Classe sentem-se obrigadas a solicitar uma representação e muitas insistem mesmo para tê-las em suas casas. Em certas noites, principalmente nos dias da festas dos três santos, o grupo representa várias vezes (...) Todas as representações são muito concorridas. O dono da casa oferece cadeiras e refrescos aos amigos, parentes e compadres. Os demais juntam-se na rua para assistir à função (WAGLEY, 1988, p. 210).
Charles Wagley já notara o sentido de disputa, certa rivalidade entre os grupos de bois antigos de Itá, que se desafiavam para ver quem se apresentava mais bonito, com “as fantasias mais luxuosas e os atores mais originais”. Comparando com Fonte Boa, Tira-Prosa e Estrelinha, devem ter sintetizado essas primeiras “disputas” (e brigas) pelas ruas e terreiros da cidade que, decerto, já agregavam alguns símbolos de diferenciação em relação ao “outro”, como as famílias responsáveis pelo boi e o local de sua origem (bairro).
Na verdade, as imagens simbólicas do antigo boi de terreiro fonteboense eram formadas a partir do próprio cotidiano vivido por seus participantes cujas experiências eram narradas ou cantadas registrando acontecimentos triviais da sociedade local, ou mesmo fatos mais importantes de outros lugares, além das atividades de trabalho (pesca, caça, roça), os laços de parentesco, as relações com autoridades da cidade e os conflitos sociais. Pelo que ouvimos falar, a partida do boi era motivo de tristeza e nostalgia, toadas de despedida eram cantadas sempre aludindo à próxima temporada de boi e à saudade que o boi deixara.
José Aldemir (2000, p.205) faz uma referência interessante entre as habitações das pequenas cidades amazônicas e sua relação com a cultura indígena, segundo ele até hoje negligenciada pelos estudiosos da região, trata-se do terreiro de terra batida. Realmente o terreiro na frente das casas aparece sempre como uma área muito limpa não cercada entre a casa e a rua, na zona urbana é onde se realizam os festejos de santo ou alguma outra comemoração coletiva como aniversários na zona rural também servem como espaço de festa em especial às religiosas, apesar de pertencente a uma determinada casa, o terreiro de terra onde o boi brincava era coletivizado, permanecendo ocupado por pessoas diferentes desde o começo da noite até altas horas da madrugada quando o boi e sua trupe se despediam como demonstra a toada de autoria de Antônia Lisboa: “Varre o terreiro bem limpo, óh linda morena, o meu boi vai chegar, boi do meu coração...” (Enfeite de Amor, Tira-Prosa, 1997). Apesar do avanço do concreto sobre os terreiros de terra batida, ainda é possível observar a existência desses espaços de sociabilidade na cidade que guardam inequívocas semelhanças com o terreiro das aldeias indígenas.
As pessoas que viveram a brincadeira do boi de terreiro mais antiga em Fonte Boa, ainda recordam de cantigas (toadas) cantadas durante as apresentações nos terreiros daqueles que podiam pagar para ver o boi dançar. O professor Sebastião Lima, que durante muitos anos foi brincante de boi (amo do boi Tira-Prosa), além de organizador do referido bumbá e coordenador de cultura do município, relembra alguns trechos de toadas e versos antigos do boi de rua fonteboense:
Oh lua, que tanto brilha, que ilumina quase o mundo inteiro...
Xô, passarinho, meu gavião totoriá, oh vaqueiro pega na vara tá na hora de matar...
Vem vê, morena vem vê, vem vê qual é o maior, venha ver boi Tira-Prosa que esse ano é o melhor...
E rola e rola e rola boi, e rola boi-bumbá, quem mandou você rolar, e rola boi-bumbá...
Eu tava na beira da praia, quando meu boi embarcou, foi a prenda mais bonita que as águas do mar levou, adeus, adeus que já vou, pois despedida quem vai sou eu...
Esse ano o trunfo é paus, meu baralho não negou, eu levei atirei paus, eu tirei balanceou...
Estes versos, em grande parte de autoria desconhecida, demonstram a simplicidade dos motivos do boi-bumbá de terreiro: a lua, o versador que canta toadas lisonjeiras à morena bela, o brincar São João à luz da fogueira, o tom do desafio que marcava os encontros entre bois rivais (Tira-Prosa e Estrelinha, por exemplo) que, segundo nossos informantes, sempre terminavam em brigas de paus e estacas, às vezes o próprio boi servia como “arma”, já que era feito de madeira e cipós resistentes. Deve-se mencionar que até meados dos anos 80 não havia uma preocupação com a ecologia, com a questão indígena ou com a tradição cabocla, as toadas feitas por pessoas simples agregavam elementos curtos e singelos de seu universo cotidiano.
Em relação ao boi de terreiro fonteboense, é possível dizer que ele seguia basicamente a mesma estrutura narrativa e de apresentação de outros bumbás da Amazônia e, como afirma Amaral (1998, p.274) colocava “a cultura nas ruas, revivendo a história do povo representada pelo próprio povo...”.
Após a fase de terreiro, terminada no final da década de 70 quando a família Oliveira, decepcionada com a falta de incentivo, deixa de colocar a brincadeira com toda a sua expressividade anterior (mesmo que seu Catulino - João Alfredo de Oliveira Filho, figura proeminente dessa fase - ainda tenha organizado o folguedo até o início da década de 90, pouco antes de sua morte), o bumbá fonteboense inicia um segundo momento ao qual denominamos de boi de escola, quando a partir dos anos 80, professores, alunos, gestores e funcionários das escolas estaduais passaram a organizar e apresentar a brincadeira. “Em relação ao boi de escola, eu já era profissional, já trabalhava como professor, então havia a disputa entre o boi da minha escola, Waldemarina, acho que era o Tira-Prosa, e o boi do São José, Banho-de-Ouro. Então já havia uma disputa, mas não com essa alegoria de hoje, havia uma disputa com alguma inovação. Eu lembro que na gestão da professora Jany Lins, foi apresentado no boi um dragão, então a inovação já começava a partir daí”, recorda o professor Sabá Lima em entrevista ao pesquisador.
A quadra da escola estadual São José no centro da cidade foi a primeira a receber a apresentação de cordões folclóricos organizados para a disputa de melhor da festa, dentre os quais a dança do boi (a escola criou o boi Banho-de-Ouro com as cores amarelo e preto), nesta sua nova fase. Segundo dizem, a quadra foi construída durante a gestão do prefeito Francisco Pereira de Souza, no início da década de 80 do século passado, atendendo a pedidos de um grupo de professores que criavam naquele momento o I Festival Folclórico, justamente para este fim. A escola estadual Waldemarina Ferreira também realizou em 1988 a sua festa junina, no pátio onde ao redor foram erguidas arquibancadas de madeira, que contou com a apresentação de diversas danças e do boi-bumbá.
Em 09 de abril de 1997, alguns professores e admiradores da brincadeira do boi da Cidade Nova lavraram a autuação do “Histórico do boi-bumbá Corajoso”, mencionada em processo, registrado no Cartório Público de Fonte Boa, Livro nº B-9- fls.124, número de ordem 299, na secção títulos e documentos:
Surgiu em 1991, pelo professor Francisco das Chagas Fernandes de Freitas, então Diretor da Escola Estadual Arthur Costa e Silva, que pela primeira vez apresentou o boi-bumbá com o nome de Caprichoso, nas cores azul e branco, que consagrou-se campeão, conquistando seu espaço no Folclore fonteboense.
No ano seguinte, o referido bumbá, por motivo óbvio, conquistou apenas o segundo lugar.
No período de dois anos, ou seja, 1991 a 1992, o boi-bumbá Caprichoso, com cores de origem, permaneceu representando a escola acima citada.
Em 1993, em comum acordo com o professor Francisco das Chagas Fernandes de Freitas, foi criada uma Comissão Organizadora, sendo eleito por unanimidade como presidente o referido professor e como vice-presidente a Sra. Vanusa Torres, que neste ano mais uma vez consagrou-se campeão, sendo, portanto, bi-campeão do disputadíssimo Folclore fonteboense.
Em 1994, o referido bumbá não se apresentou por motivos particulares.
Em 1995, para evitar plágio aos bumbás de vários municípios do Estado do Amazonas, o Presidente convocou vários participantes para uma reunião sobre a substituição de nome Caprichoso, foi decidido por unanimidade um outro nome: Corajoso, que foi devidamente registrado pelo Sr. Francisco das Chagas Fernandes de Freitas, fundador e o mesmo consagrou-se tri-campeão de 1995.
Em 1996, por motivos óbvios não se apresentou...
O supracitado texto é imprescindível para a análise do boi fonteboense na sua fase de escola, chamando a atenção sobre algumas questões pontuais para o nosso estudo: o boi de escola não era formado apenas por pessoas envolvidas com a instituição de ensino, isto é, pessoas “de fora” da comunidade escolar também faziam parte da preparação e apresentação do boi, caso da senhora Vanusa Torres, Wallace Caresto, Paulo Cobra, Doso, que não eram professores nem funcionários da escola Armando Mendes.
A versão atual de boi de arena, surgido diretamente da fase escola anterior, tem como marco a criação do Festival Folclórico de Fonte Boa por um grupo de professores em 1980, conforme dito acima. O Festival foi criado pelas escolas na gestão do prefeito Francisco Pereira de Souza, com o objetivo de “resgatar” antigas brincadeiras da cidade, como as danças, as quadrilhas e o boi-bumbá. Destacam-se, neste período, os professores Humberto Lisboa, Jesuete Pacheco, Dorgival Lisboa, Jany Lins, Terezinha Braga, Pedro André, Graça André, Graça Affonso, Francisco das Chagas, etc. Não obstante, os bois só foram efetivar suas apresentações nesta Festival a partir dos anos 90, tanto que as maiores atrações da festa junina eram as danças como o Barqueiro, o Caipirão, o Gambá, a Dança Portuguesa e as quadrilhas. Pouco depois, como informa o professor Sebastião Lima, o boi saiu das escolas: “Pela necessidade de expansão do Festival Folclórico, nós achamos melhor trazer a escola, fazendo com que o boi deixasse de ser da escola e passasse a ser um boi do município. Só houve essa transferência, mas os brincantes continuaram a ser da escola, e são até hoje. Então as escolas tiveram participação importante na efetivação dessa disputa”. A partir de então os bois-bumbás ofuscaram as outras manifestações que, cada vez mais acanhadas, hoje recebem pouca atenção das pessoas e autoridades da cidade.
A dinâmica da trajetória do boi-bumbá de Fonte Boa, do terreiro à arena, incide na noção de movimento, de “passagem”, defendida por Henri Lefebvre (1991) quando ele discute a ideia de centralidades culturais móveis. Tanto o terreiro, quanto a quadra da escola e agora a arena, tornaram-se centralidades pelas quais os grupos que legitimaram o boi passaram, tecendo redes de relações sociais, fazendo a sociedade comungar consigo mesma e atuando como mecanismo catalizador das emoções, criatividade e participabilidade apoiada na construção coletiva, dentro de diferentes contextos espaciais. Quando em meados dos anos 90, professores e alunos “levaram” o boi-bumbá para dentro da escola, passando a confeccionar no mês de junho as fantasias e adereços, o próprio boi Corajoso tendo como primeira “morada” uma das salas da escola estadual Armando Mendes, junto às fitas coloridas, cola e plumas, ocorreu que um espaço normalmente designado ao estudo tornava-se durante um período de tempo, um “espaço especial”, sobretudo, local do encontro de admiradores para a preparação do boi. Como recorda um dos fundadores do boi de escola fonteboense:
“A gente se reunia no Armando Mendes pra fazer o boi. Os professores, alunos, e outras pessoas passavam o dia e entravam pela noite, aliás de noite era que o trabalho aumentava, confeccionando as fantasias ou ensaiando, nesse tempo tinha a rainha do leite, a florista. O boi de madeira deu um trabalho pra fazer ele mexer a cabeça, improvisamos o movimento com pneus de borracha”.
A fala do professor Francisco das Chagas em conversa com o pesquisador em outubro de 2008, revela que fora os funcionários e alunos da escola, outras pessoas ajudavam na confecção do boi, o que nos leva a pensar que indivíduos diferentes se reconhecem “não por intermédio de vínculos construídos no dia-a-dia do bairro -, mas sim se reconhecem enquanto portadores dos mesmos símbolos que remetem a gostos, orientações, valores, hábitos de consumo...” (MAGNANI, 2000). Então, a empatia ou a proximidade se constituíram em suportes de uma experiência que acentuava intensamente as relações emocionais e dos contatos afetivos, que multiplica ao infinito as comunicações, e efetua, repentinamente, uma abertura recíproca entre as consciências na medida em que a festa não mais necessita de símbolos e inventa as suas figurações que desaparecem, muitas vezes. E são nesses espaços culturais, quer no terreiro quer na arena maximizada, que conviveram todas as possibilidades de expressão da cultura popular local.
De acordo com Lefebvre (1991) e Magnani (2000), pode-se ponderar que não são apenas as calçadas, os prédios e as ruas que dão forma às cidades, mas todas as dimensões da vida humana em coletividade, sendo assim, a festa dos bois-bumbás em Fonte Boa tornou-se um elemento de indução das espacialidades, promovendo alguns lugares como “especiais”, centrais, no que tange ao encontro e à sociabilidade, além dos terreiros, pátios e quadras das escolas no passado, citemos o Bumbódromo hoje. Com efeito, ao que tudo indica os espaços tornaram-se “especiais”, frutos das vivências e da experiência do grupo social que com ele possui um vínculo indissociável.
Tudo nos leva a crer que embora o evento do boi fonteboense há muito tenha deixado pelos terreiros, quadras e pátios boa parte de seu lado de invenção lúdica, tornando-se um espetáculo metamorfoseado pelas contingências urbanas e mercadológicas, percebe-se claramente que ainda persistem elementos populares resinificados, seja no auto que mantém a trama original ou mesmo na participação efetiva dos antigos brincantes do boi de terreiro na versão atual de arena, dando a legitimidade da tradição à festa.
Pensando nessas mudanças, nesta sua trajetória do terreiro à arena, o boi-bumbá de Fonte Boa vem modificando seu conjunto simbólico, embora observemos notórios elementos de continuidade como a rivalidade entre dois grupos rivais, a questão do lúdico, de brincadeira como o boi é carinhosamente chamado por muitos de seus participantes, a presença de diversos personagens do auto, a exaltação da mulher morena, por outro lado são evidentes as mudanças que vão desde a adoção de temáticas regionais pelos temas e toadas (imaginário indígena, vida cabocla), passando pela profissionalização – artesãos tornaram-se artistas contratados que utilizam técnicas plásticas modernas, a morena bela torna-se cunhã-poranga, o grupo de índios, antes servil e sem graça que vai à procura de Pai Francisco agora é a tribo coreografada cheia de cores e ritmos, o pajé, outrora simples curandeiro que fazia o boi ressuscitar, ganha poderes mágicos para combater feras medonhas do imaginário amazônico, o papel de índio e caboclo ganha notoriedade, tambores forrados com pele de anta ou onça curtidas ao sol transformam-se nas poderosas batucadas com seus tambores e caixas amplificadas, as famílias que pagavam para ver o boi dançar em frente às suas casas foram substituídas pelo poder público, os “donos” ou “famílias” deram lugar às diretorias.
Preterindo toda e qualquer visão romântica da festa dos bumbás locais, pode-se falar em mudança cultural, com rupturas e continuidades inerentes à condição dinâmica da própria cultura popular que se redimensiona conforme as influências: a festa ainda anda de mãos dadas com o lúdico, mas sem abandonar a competição institucionalizada, seu motor propulsor. Saber tradicional e modernidade caminham lado a lado, talvez não de forma harmoniosa, jamais vai ser assim, mas com certeza de maneira aceitável – o boi é um fenômeno sociocultural aberto. A tradição germinou nos terreiros, fincando-se no espírito do povo, efetivou-se nas escolas já com alguma inovação, ficando assim pronta para receber e adequar-se às exigências da modernidade no boi de arena. Como sintetizou um de nossos informantes: “as mudanças enriqueceram a tradição”.
Nesta caminhada de quase 80 anos do bumbá fonteboense, as brigas de rua cederam lugar a uma disputa regulamentada com jurados e itens, sujeitos e famílias, em diferentes momentos, exerceram papéis importantes (e ainda exercem), boizinhos surgiram para depois desaparecerem, lugares tornaram-se especiais para mais tarde serem substituídos, é com Corajoso e Tira-Prosa que a festa vai alcançar seu amadurecimento, entre as fases de escola e arena, que a sociedade fonteboense vai se identificar, se polarizar e tentar “ser vista” e “reconhecida” para além de suas fronteiras, a partir de uma “luta” entre facções para melhor representá-la, tendo o bumbás como instrumento para este intento.
Até aqui a análise das fontes nos sugere que a brincadeira do boi, do ponto de vista histórico seja em Fonte Boa ou em Parintins, teve início nas ruas, terreiros e quintais à luz de lamparinas, nas rodas de pescadores, seringueiros e agricultores que perambulavam a fim de celebrar os santos juninos. Aliás, a figura do seringueiro parece ter sido preponderante na configuração do boi com novos enredos e personagens, desde Tupinambarana na fronteira com o Pará, passando por Manaus, até chegar ao Alto Solimões. Pelo menos aqui não temos provas de que a encenação do auto-do-boi foi usada como instrumento de catequese religiosa, todos os caminhos nos levam às migrações nordestinas no período áureo da borracha, e à inserção de seu principal folguedo na vida comunitária fonteboense.
De maneira panorâmica, reportando-nos aos itens de arena de cada Festival, pode-se mencionar que em Fonte Boa existem os personagens rainha da batucada ou marujada, trajes regionais e guardiãs do bumbá que não existem em Parintins. Outro ponto de diferença refere-se ao fato do item toada, letra e interpretação ser obrigatoriamente inédito em cada noite no bumbá fonteboense, o que não ocorre no boi da ilha Tupinambarana. Uma marca de tradição no boi de Parintins é a vaqueirada (os guardiões do boi) que é item de julgamento, enquanto em Fonte Boa forma apenas elemento de composição cênica quando entra o boi. Quesitos como galera (que também deve se manter em profundo silêncio quando da apresentação do outro boi, e isto realmente ocorre), alegoria, tuxauas, levantador de toadas, sinhazinha, cunhã-poranga, o boi-bumbá, dentre outros, possuem basicamente as mesmas características e funções cênicas nas duas festas.
Outro ponto interessante, no boi-bumbá de Fonte Boa um brincante de uma agremiação não pode se apresentar na outra, pelo menos não no mesmo ano. Nossas observações dão conta de que a mudança para o boi “contrário”, mesmo que seja no outro festival, é motivo de discórdia, projetando sobre o indivíduo que muda uma marca de um quase “traidor”, passando a ser visto com desconfiança e até aversão por parte dos brincantes e torcedores de seu antigo boi. Logicamente que a história dos bois mostra diversas mudanças, inclusive em postos importantes da diretoria, mas tais casos refletiram durante muito tempo no contexto da festa, e a pessoa que mudava ficava entre a raiva do grupo de seu antigo boi e a desconfiança do grupo que o recebia. Um exemplo constatado é o do apresentador do boi Corajoso em 2007, Gilson Nascimento que, durante muito tempo desempenhou esta função no boi Tira-Prosa. Ao mudar de agremiação, sofreu retaliações da torcida vermelha e branca, inclusive com sérias agressões verbais e tentativa de agressões físicas após a divulgação do resultado que deu a vitória ao seu novo boi. Se olharmos o Carnaval Carioca ou Paulista sob esta ótica dos bois o sentimento será, no mínimo, de espanto geral, com a atitude de artistas de televisão ou foliões anônimos que ao término de uma apresentação correm suados, trocam depressa de fantasia a fim de desfilar nas próximas Escolas de Samba, algo inconcebível entre os bumbás fonteboenses. A etnografia de Braga (2002, p.114) sobre a festa dos bois de Parintins demonstra o contrário do que identificamos em Fonte Boa, isto é, lá “Pode-se desfilar tanto no Garantido como no Caprichoso (...) Existem brincantes que desfilam nos dois bois-bumbás, em um mesmo ano”.
O que é inegável nas duas festas, a revisão da literatura acerca dos bois parintinenses e nossa etnografia sobre os bois de Fonte Boa deixam evidente, é a legitimação da cultura da festa por parte de ambas as populações que são fascinadas pelo boi-bumbá. Talvez o amor por cada boi em Parintins tenha seguido outros caminhos diferentes daqueles de Fonte Boa, porém, em último caso, os povos gostam do que apresentam, orgulham-se do que fazem e da história de sua brincadeira que, obviamente, guardadas as devidas proporções, atraem gente, dão oportunidade de trabalho, erguem carreiras artísticas, por outro lado, deixam dívidas e expõem as mazelas das sociedades, mas e, sobretudo, representam o que cada uma das cidades diz produzir de melhor.
Quanto aos personagens, o que se pode dizer é que o boi-bumbá moderno busca o novo sem a negação do antigo. Ou seja, o novo só é possível graças à reafirmação do antigo, a inserção de novos elementos mediados pela tecnologia moderna não representa a supressão do passado, mas este passado fecunda-se com os símbolos da modernidade, fundindo-se num auto-do-boi diferente. Em Fonte Boa Pai Francisco e Catirina permanecem até com mais proeminência que antigamente, já que hoje são itens que concorrem a pontos; as tribos, os tocadores, sinhazinha, o boi o pajé, os vaqueiros, o amo, continuam fazendo parte da trama; porta-estandarte, cunhã-poranga, rainha do folclore, guardiães do bumbá, rainha dos percussionistas, são personagens novos, que longe de degradar o drama original, demonstram a abertura ao ambiente cultural que só pode ser compreendida a partir de seus contextos concretos. Se julgamos que a cultura popular não pode ser pensada enclausurada pelo passado ou destruída pelas novas contingências modernas, do mesmo modo não podemos achar que o desaparecimento de personagens como o padre e o doutor, representa uma perda irreparável para os bumbás, até porque a dinâmica cultural inerente à própria essência da festa regional se encarregou de exaltar a figura do pajé indígena, que assumiu a exclusividade da cura nesta nova versão do boi.
Não há como negar o dispositivo simbólico do auto-do-boi que explicita o problema das três raças no Brasil: o negro, o branco e o índio. Em praticamente todos os bois do Brasil, certamente em Parintins e Fonte Boa também, de modo tenso e cheio de ambivalências esta manifestação popular manipula, desde seus primórdios, códigos sociais vinculados à formação de nossa “brasilidade”.
É possível observar um forte sentido simbólico nas letras das toadas, fantasias e alegorias dos bois que jogam com motivos culturais regionais, o que confere à festa fonteboense uma série de elementos que expressam uma espécie de imaginário amazônico. Como explica Lévi-Strauss (1982), um jogo se efetiva em função de regras culturalmente construídas e nas múltiplas partidas que se joga, que tendem ao infinito. A cultura popular afirma os valores dos envolvidos na festa, o brincar de boi torna-se ferramenta de crítica, de sarcasmo e de luta social, a rivalidade cultural se agrega a outros elementos arcaicos e cresce em Fonte Boa.
Em texto recente, o poeta paraense João de Jesus Paes Loureiro (2002, p.119) escreveu sobre um fator importante do que ele chama de “civilização cabocla”: “na Amazônia também, como em todo o Brasil, o cidadão se expressa essencialmente pela emoção”. Pensar nos sujeitos que moram na região amazônica como tendo função determinante na construção de um imaginário regional, por operarem com símbolos peculiares à sua própria cultura, é compreender que os indivíduos, tal qual sugere Durand (2001), “tem um papel na dinâmica das culturas humanas”, cujos resultados “são produções intelectuais que se expressam na poesia, na classificação das coisas, em taxionomias, ou de outros sujeitos em diferentes formas de organização e convivência social” (BRAGA, 2005, p. 3). É, de fato, o que nos sugere a interpretação da festa dos bumbás, pois nela o fonteboense estabelece uma ponte com a sua história, seus anseios, seus conflitos, sua arte e capacidade imaginativa, construindo relações intra e extra-comunitárias, uma vez que tal manifestação cultural exige a participação não somente das comunidades rurais do município, mas também de outras cidades na sua construção e apresentação.
Na festa dos bumbás, a figura do caboclo, enquanto homem amazônico vem assumindo outro significado, orgulhando-se em ser mestiço, descendente das antigas tribos que miscigenaram-se com os brancos e negros que para cá vieram, este sujeito agora assume ativamente um comprometimento com a preservação da natureza circundante e com os demais problemas relativos à Amazônia. São inúmeras as composições que exaltam de forma romantizada a figura do “caboclo”, como esta do Tira-Prosa (2002): “Sou caboclo, sou tão forte, sou valente vivo a lutar...”. É pertinente lembrar que ao discutir sobre o conceito de “caboclo”, deve-se atentar para o longo processo histórico de trocas, fricções, misturas e cruzamentos feitos de memórias, mas, sobretudo, de esquecimentos, durante a caminhada de formação desse tipo humano.
Ainda segundo o autor não é somente no terreiro que podemos notar os rastros de uma cultura indígena nas pequenas cidades amazônicas, sobretudo, nas situadas nas margens dos rios, mas também na alimentação: os vinhos de abacaba, açaí, patauá, o peixe moqueado, o beiju, a carimã, a piracaia; na cestaria especialmente o paneiro; nos instrumentos de pesca, o arco e a flecha.
É interessante notar na atualidade a importância das escolas como “centros” de incentivo e produção da cultura nas cidades interioranas do Amazonas. Parece que depois do tempo de rua e terreiro, com o avanço das proibições legais e mesmo com a diminuição dos espaços públicos, foi na escola que as manifestações socioculturais encontraram um porto seguro, ressignificando-se e recebendo toda espécie de influências que garantiram, de alguma forma, sua permanência. Não são poucos os exemplos de manifestações populares que floresceram ou se desenvolveram em escolas, citemos como evento emblemático as cirandas de Manacapuru.
Fonte:
Estudos e Texto
adaptado da Dissertação de mestrado intitulada
“A festa na cidade que o
barranco levou: dinâmicas culturais e políticas do brincar de boi em Fonte Boa
(AM)”, de autoria de Yomarley Holanda – professor e coordenador de curso da
Universidade do Estado do Amazonas (UEA/CEST).
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